vendredi 16 juillet 2004
Segundo Encontro Mundial dos
O real das favelas, um olhar de Paris
Tema: As subjetividades contemporâneas
Sub-tema: Violência e destrutividade nos tempos de hoje.
Resumo : O noticiário sobre a FEBEM, ao fim de uma greve de 4 dias dos funcionários, falava que as crianças antes apareciam com hematomas, mas agora aparecem com traumatismo craniano, pernas e braços quebrados e até mesmo mortas. Os funcionários dizem defenderem-se.
Na experiência que tive como coordenadora de uma “casa de passagem” para adolescentes em situação de risco, em São Paulo, que ao invés de procurar a inserção dos adolescentes numa outra comunidade, limitava-se a enclausurá-los, muitas brigas ocorriam entre eles. O que mais me impressionou foi o modo de relação que os profissionais mantinham com aqueles adolescentes. Uma linguagem paranóica logo se instaurava supondo o pior nos adolescentes, por exemplo, se se aproximavam de um carro era porque eram “puxadores” de carro. De fato, muitos se apropriavam do bem alheio com facilidade. Parecia-me sem saída a relação autoritária que logo se manifestava através de uma linguagem dura com imposições e ameaças. Parecia não ter lugar para uma escuta outra.
A partir desses comentários e da troca de mensagens com Tristan Foulliaron e de textos sobre o seu trabalho no ASE (Assistance Sociale à l’Enfance de Paris), é que surgiu este texto, em co-autoria, a respeito da apropriação da palavra por jovens ameaçados de morte no ambiente em que vivem, onde parece que a linguagem dura é a única que entendem e a dificuldade em desarticular essa relação de força, de subjugação, de um corpo a corpo entre os jovens e os adultos.
O "discurso" com o qual jovens moradores de favelas e de rua tentam se inserir no social parece mais com restos de palavras lançados de corpos fragmentados veiculando o imaginário da castração, que por não ser simbolizada é encenada como tentativa de inscrição de pedaços de real roubados a um Outro ameaçador.
O problema não é uma “morte” simbólica, nem mesmo imaginária, mas uma morte real e assim inimaginável. Isso nos obriga a mergulhar num mundo de processos de sobrevivência sem limite, sem leis senão aquelas emanadas do real: as leis do suposto corpo, a lei do suposto mais forte.
A partir daí só resta o grito, na medida em que o grito representa a demanda de demanda. Quando não se pode mais demandar grita-se, bate-se, insulta-se. Esses processos são encenados quando a demanda desmorona. Quando toda demanda articulável recebe um fim de não receber, quando se pressupõe que não levará a nenhuma mudança no outro, quando já é recebida como fracassada. Gritos que ecoam de todas as formas possíveis: gírias, xingamentos, ameaças de morte, que são como tapas e bofetões que visam o aniquilamento do outro, palavras como balas de revólveres, como armas. As palavras são utilizadas para espancar, maltratar, subjugar um outro interno e externo perigoso demais.
Somos confrontados com mecanismos de sobrevivência quando as tensões reais-imaginárias são extremas, porque o simbólico está empobrecido. A sobrevivência deve-se aos mecanismos de fuga ou ataque da etologia animal mais do que da humana. A palavra é antes de tudo um mecanismo de fuga-ataque, de sinais relativamente convencionais da comunidade que permitem se evitar como sujeito desejante, sofredor. A demanda só pode se transformar em grito porque esta não remete apenas à frustração, mas à privação no real (eu te mato se...).
Quando se pensa que o pai da realidade encarna a função simbólica e que é preciso inserir o pai a qualquer preço e se confunde frustração com castração, se confunde o objeto e a palavra, o que é da ordem da castração imaginária.
No encontro com tais crianças gritos-dores-ameaças é preciso, ao mesmo tempo, compreender a violência delas e tentar subvertê-la passo a passo. Tomar ato dessa violência e lhes dizer que se dirige primeiro a si mesmas, antes de se exteriorizar no outro (tanto vítima quanto carrasco). O outro é fundamentalmente ameaçador, perigoso e a transpor todos os valores: ele nunca protege e ainda goza!
Escutar os modos de sobrevivência sem analisá-los, mas construindo o que poderia se traduzir em demanda no sonho-pesadelo de seu relato. A abordagem possível seria a de passar do grito à demanda num primeiro tempo, passar das palavras de sobrevivência ao reconhecimento mínimo do sujeito: uma demanda.
O tempo de gritos-violências sobre si e sobre os outros são muitas vezes indispensáveis, é preciso respeitar a violência subvertendo-a, é preciso ouví-las, dar-lhes palavras, autorizar a dizer “eu” sem medo de que o mundo desmorone ao redor delas, para que possam colocar em outras palavras as violências vividas.
É longo e doloroso tanto para elas, quanto para o analista, é preciso não estar nem tão perto, nem tão longe. Muito perto delas é insuportável (mobiliza todos os mecanismos de sobrevivência) e são terrivelmente violentas: longe de nós gozar delas (como de costume) que elas já querem nos matar! Às vezes, devem gozar de se autodestruir e de destruir tudo o que poderia construí-las, como se tivessem escrito no fundo de si mesmas que nada será possível, apenas as lógicas de morte real que aguardam, muitas vezes, sem afetos.
Tentar colocar palavras justas: é preciso ter sofrido muito para falar e viver no terror. Devemos advir às "geometrias variáveis" sem garantia de termos qualquer coisa de certa. De fato, não param de encenar e re-encenar os maus tratos sofridos na infância; elas se/nos sadizam e se/nos seduzem, às vezes, colocando em cena os quatro movimentos nas palavras, gestos, pulsões, passagens ao ato sobre os outros, sobre a instituição.
Muitas vezes pedem para que as rejeitemos: "não valho nada/você não vale nada", "eu deveria morrer/você deveria morrer”, “não adianta nada querer me ajudar/você não se importa comigo” tentando assim provocar nosso desejo/rejeição (palavras como essas nos colocam na pista dos traumas que atravessaram na infância).
O mecanismo que se mostra é que não podem suportar ser reconhecidas, respeitadas, amadas como os “normais” sem que isso as remeta às feridas profundas de falta de reconhecimento, de amor que sofreram.
Outras vezes, também, tornaram-se autistas-que-falam, dispõem apenas de algumas injúrias para falar e praticamente não podem elaborar, pois são psiquicamente pobres. Não param de reproduzir como uma droga um mundo desesperante inexorável sobre o qual não se pode nada. Quase sempre nos sentimos impotentes apesar dos tesouros que tentamos lhes prodigar para que se sirvam.
Essas crianças nos dizem que é preferível ser louco do que morrer e se a morte acontece é apenas a conclusão lógica de uma sobrevivência roubada à morte. Assim como os escudos humanos, os homens bomba desse mundo em que se matou a palavra, os sujeitos, onde a única lei das relações humanas seria: “sai daí que esse lugar é meu”. Qualquer outro é fundamentalmente agressivo, perigoso e a palavra é apenas uma maneira de espancar, matar, é um pedaço de corpo e não um lugar de troca simbólica.
Nesses tempos de violência, assim também a nação mais desenvolvida nos dá o exemplo, surda aos apelos da opinião pública, numa atitude de onipotência que nos dá medo.
Todo o nosso trabalho tem por objetivo, não o de curá-los, mas de que possam se apropriar de uma questão de sujeito, mesmo que seja um embrião de questão, a fim de que, num segundo tempo, talvez, venham a pedir uma terapia.
Obrigam-nos a trabalhar com os limites do nosso "não querer saber", levando-nos às nossas suposições extremas, mas é ilusão, de fato, temos muito que aprender dos processos de sobrevivência-loucura que encenam para não morrer.
Obrigam-nos a varrer a semiologia, as perversões-neuroses-psicoses de nossos estudos e freqüentemente as certezas clínicas mais arraigadas (a teoria sexual infantil, por exemplo).
Quando conseguem falar e serem ouvidas aprende-se muito sobre economia psíquica.
Quando é possível colocar a criança em posição de sujeito, de poder escolher, de ser considerada enquanto desejo autônomo, humaniza-se e o olhar brilha iluminado, ligado, atento, e ela passa a expressar suas vivências num processo de simbolização, quando o espaço lhe é oferecido, testando os lugares possíveis de se colocar, cada um indo atrás do que precisa para se constituir enquanto sujeito.
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